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Desde que me lembro, minha vó era muito: falava muito, saia muito, ria muito. Às vezes, era até demais. Quando a visitava, corria pra acompanhar seu ritmo e acabava sempre esgotada de tanto ouvir suas histórias e passear por aí. Mas, há pouco tempo, ela caiu, quebrou o quadril e nunca mais foi a mesma…


Desde então, ela é muito menos. Não consegue caminhar, precisa de ajuda para quase tudo e sua audição cada vez mais fraca a fez uma senhora de poucas palavras. Seu quarto se transformou em sua casa – com geladeira, máquina de lavar roupa e microondas – e lá ela passa os dias assistindo à televisão.


Essa semana, eu e minhas irmãs fomos ao Rio de Janeiro visitá-la. Por um lado, foi muito difícil vê-la tão fragilizada e recolhida – apesar de estar bem de saúde e muito bem cuidada, é impossível não se entristecer diante da sua desvitalidade. Mas, por outro lado, nunca me senti tão conectada a ela quanto dessa vez.


Na ausência do barulho, do movimento, do batom, do perfume e das joias, restou apenas a minha vó.

Deitada ao lado dela, senti o toque fino de sua pele, tracejei as veias saltadas em seu braço e acariciei os cabelos cortados por ela mesma. Percebi como eu e minhas irmãs herdamos seus traços – e como suas pernas são parecidas com as da minha mãe. Contemplei-a dormindo e vi uma mulher forte, mas que, no fundo, é apenas humana.


E de tudo que já vivemos juntas, nada me comoveu mais que esses momentos em que estivemos em silêncio, de mãos dadas. Ou o sorriso que ela abria quando a gente entrava pela porta. Ou quando olhei em seus olhos e disse que a amava – e ela olhou nos meus e disse: “Eu sei, filha. Eu também te amo”.


Voltei para Florianópolis com o coração apertado e os olhos cheios de lágrimas – mas com a sensação que recebi um presente muito valioso: a minha querida vó.


Olhei pro bloco de madeira e pensei: não vou conseguir.

Comecei a esculpir com o mínimo de força – já que não ia terminar mesmo… Ao meu lado, 22 mulheres trabalhavam vigorosamente. Eu admirava o progresso delas e fitava meus braços finos – com pena de mim mesma: se eu não fosse tão fraquinha…

Até que um dia, numa tarde de calor absurdo, senti raiva. Raiva do suor, do martelo pesado, da ferramenta desafiada, do barulho enlouquecedor. E bati com força – uma força que nem sabia ter. A cada batida, a raiva crescia e se somava a raivas reprimidas, até explodir em meu peito.

E, no vazio que se criou, nasceu resiliência. Daí em diante, cavei com ritmo e constância até terminar. No fim, ainda sobrou tempo para lixar. Mas preferi assim: torto, imperfeito e com as marcas da minha superação.

(fiz essa gamela em uma semana, durante o quinto módulo do curso de formação em Pedagogia Waldorf.)

Quando a ideia surgiu, foi difícil apontar o autor – minha mãe comentou na mesma semana que eu e o Dudu conversamos sobre. Era basicamente essa: “que tal se morássemos na edícula da casa dos meus pais?”. Lá já tinha sido muitas coisas, – inclusive fábrica de biscoitos – mas, ultimamente, só servia pra acumular sujeira…

Logo de cara, me apaixonei pela possibilidade.


Há três anos eu e Dudu morávamos num apartamento pequeno, sem sacada e área de serviço – e com uma cachorrinha cheia de energia. Voltar para uma casa estava na minha lista de desejos mais desejados. Melhor ainda num lugar que amo e perto da minha família, com quem nos damos super bem.


Mas uma questão me perseguia: “será que devo voltar pra casa dos meus pais?”. Apesar de ser uma construção separada, com entrada independente, me perguntava o que esse retorno implicaria. Será que conseguiríamos estar perto sem tirar nossa liberdade? Será eu conseguiria me firmar como mulher sem escorregar pro papel de filha? Será que conseguiríamos estabelecer limites suaves e conviver como dois núcleos familiares distintos?


Mas, não importava o quanto eu questionasse, a imagem de morar naquela edícula enchia meu coração de alegria… Dois anos se passaram de conversas, sonhos e reflexões. Chegamos à conclusão que seria necessária uma adaptação de todos – mas que poderia ser uma experiência maravilhosa.


Até que, em 2016, meus pais decidiram reformar a casa da frente e aproveitamos para reformar a edícula também. O Dudu fez os projetos de arquitetura e pensamos em cada detalhe com muito amor e entusiasmo. Dormíamos e acordávamos falando sobre a nossa casinha – que já parecia pronta em nossos corações.


Mas na prática não foi bem assim: o que era para ser uma simples obra virou um obrão. Três meses se estenderam por um ano de muito barulho, sujeira, decisões, entra e sai de pedreiros e gastos intermináveis. Descobrimos que obras são assim mesmo, mas na hora eu só queria gritar “chega!” e mandar todo mundo embora.


Em julho fez dois anos que moramos aqui – e não passa um dia que eu não suspire de amor por essa casinha. Algumas vezes tive que pedir pros meus pais não gritarem meu nome lá da outra casa, ou aparecerem na janela de surpresa – e algumas vezes eles tiveram que nos pedir para catar os cocôs das cachorras na grama, ou lavar a lata de lixo que compartilhamos. Mas, muitas mais vezes, batemos papo no jardim, dividimos uma refeição, trocamos favores, comidas, sorrisos e delicadezas.


Morar perto é sim um desafio, mas daqueles bons de se superar.

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